Quando a leitura de um livro não nos deixa indiferentes...


Quando somos novos, achamos que os nossos dias não têm fim, que os mais velhos mencionam a brevidade da vida, mas é porque são exagerados, que as frases que proferem embasbacados quando nos veem são patetices de quem não tem mais nada em que pensar. Quando somos novos, não há cá dores nem moinhas, o tempo é aproveitado, não por poder faltar, mas porque a vida é assim, há que a gozar sempre. Quando somos novos, olhamos para os outros, para as marcas da passagem do tempo no corpo como algo tão distante que não cabe na nossa mente.
Mas os dias vão passando com as mil ocupações diárias. E de repente, somos velhos. Temos dificuldade em nos levantarmos, temos marcas e sinais e manchas que antes não conhecíamos, não podemos comer de tudo ao jantar, porque os nossos órgãos já não são os mesmos. Saltar um muro ou subir um degrau maior torna-se tarefa hercúlea de uma dificuldade imensa, também.
A velhice é natural e, ao contrário do que se pensa, nós crescemos todos os dias e diariamente envelhecemos. Tudo isto a propósito do livro Misericórdia, de Lídia Jorge, publicado em outubro de 2022, pela D. Quixote, romance que todos devíamos ler. É dedicado a Maria dos Remédios, mãe da autora, e a Luis Sepúlveda, ambos derrotados pela Covid-19, em abril de 2020. Com base numa gravação feita ao longo de um ano, entre abril de 2019 e abril do ano seguinte, a obra é uma cópia infiel da realidade. Tem a forma de diário, narrada na primeira pessoa, Maria Alberta Nunes Amado, que conta, entrada após entrada, a vida no lar, onde as noites, sendo iguais aos dias, se sentem muito mais longas.
O lar, residencial transformada no chamado Hotel Paraíso, é o último reduto dos derradeiros momentos de lucidez. É o lugar dos medos, da morte, metaforicamente apresentada como “noite”, inquiridora, esperta e persistente, que busca teimosamente o momento em que a pessoa deixa de conseguir responder. É o lugar dos choros confessados, também, como diz a protagonista “Preciso do meu lenço de pano, diluem-se nas minhas lágrimas os de papel”.
Maria Alberta revela, igualmente, momentos que a tranquilizam, como por exemplo, quando a filha, em viagem pelo mundo, lhe liga a desejar Boa Páscoa, ou quando lhe traz marmelada, figos-passa e batata-doce assada, é “como se a casa que lá deixei viesse ter comigo” chega a afirmar. No entanto, também aponta os que a angustiam, a leitura dos jornais com as infindáveis tragédias, constantes vigarices, mortes nos barcos dos que naufragam, eles e a esperança que tinham, revoltas e revoltosos que ela prefere nem conhecer. Perturbador foi o estranho caso das formigas, que a levou a refletir sobre formigas, larvas, bactérias e vírus, seres cada vez mais pequeninos, mas que, ironicamente, quanto mais pequenos são, mais ofensivos se apresentam.
No lar, há tempo de sobra, que se contrapõe à escassez de tempo dos que vivem cá fora. D. Alberti, como lhe chamam, sente dificuldades em passar para o papel os muitos sentimentos que tem com tão poucas letras que já possui. Evoca imagens perdidas na infância, sente-se regressar à criança que foi, no tempo em que juntava as palavras sem grande sentido. Tem um constante receio de que haja quem goze com a fragilidade ou que vasculhe as bolsinhas, por isso esconde tudo, só não sabe onde guardar os pensamentos. Chega mesmo a desejar a morte para não passar vergonhas, no entanto, continua a ter ainda a esperança de viver paixões.
A vida no hotel não deixa, por ser ali, de ter a dignidade que ela lhe atribui, pelo que costuma ajeitar os talheres e os guardanapos na mesa, porque diz que as raparigas não o
sabem fazer. E então sente que os ordena “perfeitamente”, sentindo que ordena “a terra, o mar e o mundo.” Ora, como em tudo, nem de todas as raparigas ela gosta. Por vezes, queixa-se da “muito alta”, estranha o constante chegar de novas funcionárias, muitas das quais nem o nome sabe, sente que, por vezes, não têm os cuidados necessários, porque deixam que desapareçam os seus casacos, provocando nela um sentimento de que não foram os casacos que foram roubados, mas a sua própria pele. Acha o mês de dezembro “um mês violento”, porque acha que o tempo em que andam com os enfeites de Natal deviam era prestar cuidados aos utentes.
Habituou-se a (com/n)viver pacificamente, no lar, com D. Rita de Lyon e o seu “Ange Gardien”, com o Senhor Peralta que tocava piano e com a D. Joaninha, analfabeta, a quem ela tenta ensinar a ler e passar o gosto pela leitura. E havia ainda o Sargento que morreu, e mais outro, e tantos mais, pois houve semanas em que morriam todos os dias. Ali, observa as lutas internas e rebela-se como os outros por mais um ovo estrelado a acompanhar o prato de “couve-arroz-salsicha”. O lar era o seu “lugar de exílio”, onde diz ter sido depositada por sua livre vontade. Também por sua “livre determinação”, não voltará mais à sua casa. Agora o lar é a sua casa, mas o mundo real é o que está lá fora. Vive ali, mas tem noção que o que se passa no exterior continua na mesma, a primavera anuncia-se, o crescimento das folhas e das flores e dos frutos continuam o seu ciclo natural e é disso que sente saudades. Vive ali, mas o seu pensamento está no mundo real, na sua casa também, que se mantém viva e nítida na sua mente. A despedida foi lenta e metódica, primeiro despediu-se do sol, da Lua, das estrelas e da Via Látea. Despediu-se das nuvens, das planícies, das estradas, das flores que nomeia com uma lucidez cristalina, da “hera, gladíolos, da glicínia, da parreira, da vinha”, e só depois da casa com as sombras, os corredores, a mobília e as fotografias. Já pertenceu ao grupo dos não infetados, já passou para o dos infetados, já deixou de parte o sonho ainda esperado, e agora, o grande objetivo é “passar a noite bem”. Liga à filha e, contente por ela ter acedido ao seu desafio, pede-lhe para ler o livro que está a escrever.
A determinado momento, já é ela, D. Alberti, que espera pela Noite, e lhe pede para a levar. A Noite, essa que sabe tudo, essa que lhe perguntou, em tempos, o que era o amor, que a confrontou com as suas desavenças com a filha, que lhe pediu para explicar como conseguiu o Atlas e o Globo Terrestre, que a acusa de usar parcas palavras, essa que, por fim, lhe pergunta o que é o Além. E, na sua voz titubeante, estranhamente lúcida, a protagonista responde-lhe que “O além é um lugar onde se guardam para sempre as trouxas com os bens mais preciosos da nossa vida.” E acrescenta, “Ou melhor, o além é um livro.” E termino com a imagem do piano arrumado ao fundo, parado, sem vida, com a triste memória dos que foram levados, um a um, (mas também dos nossos), que se opõe, aqui, ao alvoroço que sentimos depois de termos conseguido chegar a este além, e de lhe termos perscrutado os imensos sentidos, de termos lido e recordado, (mas também os nossos), de termos, afinal, vivido profunda e emocionalmente este livro.

Fátima Crujo
Janeiro de 2024

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